A temática do marco temporal é, sem dúvida, um dos pontos mais delicados e complexos quando falamos dos direitos indígenas no Brasil. Com profundas implicações na política, justiça, ambiente e sociedade, essa premissa tem se mostrado um verdadeiro campo de batalha entre diferentes visões e interesses.
O marco temporal é um conceito jurídico que propõe que os direitos dos povos indígenas sobre suas terras só poderiam ser reconhecidos se eles estivessem na posse de tais terras na data de promulgação da Constituição Federal do Brasil, em 5 de outubro de 1988. Para seus defensores, esse parâmetro traz uma necessária segurança jurídica, tornando mais clara a definição de quais territórios poderiam ser reivindicados como terras indígenas. Desse ponto de vista, o marco temporal poderia servir como uma ferramenta para evitar disputas de terra e proporcionar maior certeza legal.
Entretanto, é fundamental questionar a premissa desse argumento, que assume a ausência de violações de direitos ou pressões que poderiam ter levado à remoção forçada desses povos de suas terras ancestrais. Ao ignorar o contexto histórico que envolve a luta dos povos indígenas pelo direito à terra, o marco temporal pode acabar perpetuando injustiças e desconsiderando o deslocamento forçado, a violência e a marginalização sofridos por muitos desses povos.
Para os povos indígenas e seus aliados, o marco temporal representa uma negação do direito histórico e cultural desses povos à terra. Eles argumentam que essa política ignora as violências, pressões e deslocamentos que levaram muitos grupos indígenas a não estarem em suas terras ancestrais na data estipulada. Além disso, o marco temporal desconsidera a relação espiritual e cultural que os povos indígenas têm com a terra, que transcende as noções ocidentais de posse e tempo.
A questão do marco temporal também tem profundas implicações para a preservação ambiental. Muitas das terras que estão sob disputa são áreas de enorme biodiversidade e desempenham um papel crucial na mitigação das mudanças climáticas. Os povos indígenas têm uma longa tradição de cuidado e respeito pelo meio ambiente, e a proteção de seus direitos territoriais é essencial para a manutenção dos ecossistemas.
Finalmente, é importante notar que a imposição do marco temporal é um sintoma de uma visão de mundo que prioriza os direitos de propriedade em detrimento dos direitos humanos e da proteção do meio ambiente. A insistência em aplicar um critério baseado na posse física da terra reflete uma perspectiva que desvaloriza os modos de vida e as tradições dos povos indígenas.
Em suma, a questão do marco temporal é muito mais do que uma simples disputa jurídica. Ela reflete conflitos profundos na sociedade brasileira sobre os direitos dos povos indígenas, a justiça social e a proteção do meio ambiente. É crucial que continuemos a debater esta questão de forma aberta e inclusiva, levando em consideração todos os pontos de vista e reconhecendo a importância de proteger os direitos e as tradições dos povos indígenas.
( * ) Escritor, Prof. Me e Diretor Presidente do Instituto de Governança Fundiária do Brasil – IGFB